O recomeço


(Para entender melhor o texto abaixo, recomendo que baixe a trilha sonora que o inspirou. O link está: AQUI)

Era uma manhã daquelas. Mais uma segunda tempestuosa. A tristeza carregada no ar era tão grande, mas tão grande, que você poderia cortá-la com uma faca e passar no pão para ter a sua dose de amargura equivalente ao necessário para toda uma vida. Era, com certeza, mais uma daquelas segundas-feiras tempestuosas. Mas, ultimamente, todos os dias da semana pareciam com este.
O clima certamente refletia o meu estado de espírito. Chovia lá fora; O céu, assim como meu coração, chorava copiosamente. A água escorria pelas ruas como grossas lágrimas enquanto aquela imensidão de nuvens gritava com seus trovões. Acordar e se deparar com isso já indica que não há muita coisa pra se querer num dia assim. Resta a cachaça.
Preciso chegar até a cozinha, pegar a canha. O apartamento está uma bagunça, reflete bastante a minha vida nos últimos meses. Há roupas sujas por todos os cantos no quarto, os lençóis não foram trocados nas últimas semanas, desde que a empregada se demitiu. Meus discos de blues conformam a única parte intacta do quarto – eu não ousaria descontar minha frustração neles, na minha razão de viver. No corredor, que leva à sala, alguns traços de vômito estão espalhados pela parede – o banheiro, na primeira porta à direita, está no mesmo naipe.
Chegando na sala, última parada antes do fatídico abastecimento etílico que encontrarei na cozinha, vejo que a noite anterior fora agitada. Havia algumas novas garrafas de destilado espalhadas por todo lado. Somando-as às antigas, o cenário era desolador. Nessas horas percebo o quanto me pareço com um pudim de trago. O velho Tommy já tinha me avisado sobre isso, mas preferi ignorar. A vida na garrafa sempre é mais confortável – pelo menos até o diabo vir cobrar seu preço. Olho pela janela escancarada da sala. A julgar pela falta de luminosidade lá na rua encharcada pela chuva, imagino que deva ser cedo ainda.
Vou-me pra cozinha, esta peça impecável e não muito freqüentada da casa. Desde que Lucélia se mandou com o Ricardão, não comi mais em casa. Na verdade, quase não comi, de todo. Abro a geladeira, que está praticamente vazia, pego a garrafa de cachaça e tomo um longo e ardente gole. O contato do líquido etílico com meus lábios é quase como o beijo de uma amante: quente, molhado e loucamente desejado. Sinto-me vivo novamente; ou, ao menos, vivo o suficiente para encarar o trabalho. É chegada a hora de vazar.
Minhas roupas me esperavam jogadas no sofá, amassadas como um bêbado que apanhou demais. Visto-as, pego a carteira, as chaves do apê e dou o fora. Mais uma vez, repito mecanicamente a mesma rotina. Casa, trem, açougue, boteco, trem, casa. Era uma vida miserável, mas era o que me restava. Desde que Lucélia sumira sem dizer uma maldita palavra, nunca mais tive estômago para subir num palco ou sequer tocar numa guitarra novamente. O trabalho era uma bosta, mas pagava o suficiente para manter minha casa e meu trago. A garrafa era a única saída que me restava, além do suicídio.
Aquela segunda tinha tudo para ser igual a todas as outras. Eu estava repetindo todos os passos da minha dança autodestrutiva com perfeição – eu era o balé russo da autocomiseração barata. Voltando do bar, já podre de bêbado, subi na estação para esperar o trem da meia-noite quando, ao longe, eu vejo aqueles olhos azuis. Seria Lucélia? Nunca vou poder dizer com certeza se era ela, ou se era toda a pinga no meu sangue. Antes mesmo de eu poder reagir e andar até a garota com aqueles olhos azuis como o oceano, chegava o trem da meia-noite. Atordoado, me joguei pra dentro do vagão. Era claro que, apesar tudo, eu ainda sentia sua falta. Sempre sentiria.
Acordei com o sol, esse despertador cretino, fervendo a minha cara. Devia ser cedo pra caralho e eu não lembrava de nada depois de chegar no bar, a não ser daquele par de olhos. Aquilo parecia o fim do mundo. O sol me levantava, forçosamente, para que eu pudesse me jogar no fundo do poço. A dor de cabeça era infernal; suponho que a dose diária da última noite deva ter equivalido à dose mensal. Arrestei-me ao banheiro, enjoado. Deixo o que quer que estivesse no meu estômago e um pouco de sangue no vaso, e rastejo até o chuveiro. Abro a torneira e a água cai gelada. Cada gota é como uma navalha que me abre a carne.
A sensação de miséria era absoluta. Senti-me como no dia em que minha mulher me abandonou. Foi ali que eu dei errado de vez, acho. Mas é claro, também, que as coisas já não estavam certas antes... Essa vida noturna de blues, bares e bebidas não deve ter feito muito bem para Lucélia. Vai ver foi por isso que ela me largou. Achou um cara estável, que pudesse dar a ela algo que eu nunca daria.
Mas naquele momento, algo me ocorreu: talvez ela fosse só uma filha da puta. Da depressão profunda, essa linha de pensamento me catapultou para uma estranha sensação de ódio. Não era fácil de engolir isso, mas me decidi a parar de reclamar. Era hora de voltar à vida – à minha vida de verdade, não àquele simulacro patético que eu encenava todos os dias. Hoje, Lucélia, não chorarei por você.
Voltei para a cama para descansar mais um pouco. Não vou para o açougue – nem hoje, nem nunca mais. Apago por mais algumas horas. No retorno à consciência, procuro a guitarra para acompanhar algumas boas faixas de blues. A música era minha cura. Não sei como tinha demorado tanto tempo para perceber.
A noite caía silenciosamente, como o momento de calmaria que antecede a tempestade. Resolvi sair por aí a esmo, procurar um bar qualquer. Um recomeço. Depois de pegar um trem até o centro e andar bastante por aí, encontrei o lugar certo. Parecia uma espelunca, exatamente o meu tipo de lugar. Olhar para o letreiro que anunciava o nome do lugar, Homebound, criou em mim uma identificação imediata. Eu estava em casa.
Ao entrar, me deparei com o boteco padrão dos meus altos dias de glória. A escuridão reinava, sendo resistida por uma diminuta quantidade de luzes espalhadas nos cantos do bar. Um balcão que brilhava como se fosse o paraíso. Um palco pequeno, ocupado por uma banda da velha guarda que sabia o que fazer. O groove era nervoso, inquieto. Senti como se tivesse formigas nas calças, não podia ficar parado. Tive de dançar. Eu queria mesmo dançar, esquecer da vida. Estava lá cercado por uma multidão de gente que eu não conhecia, mas que pareciam meus irmãos de alma.
Chegava o fim da festa, eu estava exausto e o bar já se encontrava quase vazio. Peguei o último drink – uma dose dupla de uísque cowboy. Tudo se foi num gole firme e decidido. Dali, eu procuraria outro bar, um daqueles que fornece felicidade aos homens dispostos a pagar. A ideia parecia meio deprimente, mas era o que restava. Já fazia 4 meses que Lucélia havia ido embora e, de lá pra cá, nada de mulheres para o felizardo aqui.
Fui pagar a conta. Quando minha mão chegou ao meu bolso, encontrou-o vazio. A carteira tinha sumido. Alguém, durante a dança, a pegou. Todo o meu dinheiro tinha sumido, num passe de mágica. Eu estava mesmo fodido. Expliquei aos donos do bar, que não foram muito compreensivos, afinal, eu era novo ali. O segurança aplicou-me a surra da minha vida. Acho que eu mereci, no fim das contas, por tudo de errado que eu havia feito a mim mesmo nos últimos tempos. Sentado no meio-fio, limpando o sangue da minha cara com a manga do casaco, me ocorreu a verdade nua e crua: a gente pode até tentar recomeçar, abandonar o blues, mas a real é que o blues, quando nos pega, nunca mais nos abandona. Pelo jeito, o lance é se abraçar ao capeta e partir pra dança da encruzilhada. Amanhã vou procurar Lucélia, implorar pra começarmos de novo.

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