Mais amor, por favor.




Existe uma dor enorme que reside escondida atrás de qualquer ato. Raramente nos damos conta que sentimos essa dor e essa falta de consciência é justamente o que se poderia chamar de “felicidade” – é bem como diz o ditado popular: “a ignorância é uma bênção”. Para os que sabem de sua própria desgraça, resta sofrer, seja em silêncio ou publicamente.

Sofrer em silêncio é difícil porque dói muito mais. É preciso ter uma atitude quase estóica para se agüentar uma vida assim. Cagam na nossa cabeça, mas a gente não revida. Como Martin Luther King, damos a outra face e apresentamos ao mundo apenas o melhor de nós, ainda que isso não nos pareça o melhor para nós.

Escancarar para a humanidade que tudo é uma merda é igualmente problemática. Se há, por um lado, o alívio da frustração gerada pelo silêncio, há, por outro lado, a dor da rejeição. Ninguém gosta de bebês chorões – mesmo os próprios bebês chorões: já existe tanta dor na nossa vida que não estamos nem aí para o que pesa na cabeça alheia. Se algo está errado com os outros, eles que se danem. “Já tenho problemas demais pra me preocupar com isso”. Mas não se assustem caso se reconheçam nessas palavras: o ser humano, até o dito altruísta, é egoísta por natureza; ele sempre busca a satisfação pessoal acima de tudo, ainda que esta realização resida na entrega às realizações de outrem.

Nessa parada louca que a gente vive, nesse mundão caótico e pueril, que sentido pode ter a vida? Há quem busque refúgio na religião – e não me entendam mal, se isso funciona para vocês, acho ótimo! -, procurando o conforto na próxima vida, no além-vida ou numa retidão da vida atual. Funciona pra muita gente – é só ver como encontrar Deus ajuda os viciados a se livrarem dos malefícios do seu vício em particular.

Outras pessoas, por outro lado, lidam com esse problema através das drogas, sejam elas lícitas ou não. Essa parcela da população pode ser enquadrada em duas categorias sociais: um cidadão normal, caso ele não ceda aos excessos e ainda cumpra seu papel na sociedade; ou um problema social se ele não for capaz de se automoderar e, portanto, prejudicar o desinteresse alheio.

O primeiro grupo é composto pelos trabalhadores-padrão que estão na zona do aceitável. Trabalham em empregos os mais variados, chegam a suas casas, bebem sua cerveja (ou uísque, ou tomam remédios, ou fumam maconha, tanto faz, na verdade, eventualmente batem na mulher ou nas crianças (ainda que seja “de leve”, só em momentos de estresse). Não há, para os padrões do mundo, nada de errado com essas pessoas – elas pagam suas contas e normalmente não nos incomodam.

Já os que pertencem ao segundo extrato que selecionamos são aquelas figuras que costumamos desprezar. Mendigos, bêbados, drogados, minorias étnicas, minorias religiosas, prostitutas, comunistas... Não há uma distinção exata de quem deve ser enquadrado nesta subcategoria de ser humano. Só precisamos detestá-los por serem denúncias vivas do nosso próprio descaso para com o mundo. A mera existência desses seres que cometem excessos de alguma natureza - aos nossos olhos – já é suficiente para que os desprezemos. Eles nos custam dinheiro, já que necessitam do apoio do governo. Eles também nos incomodam pedindo esmolas, comida, roupas, empregos ou direitos iguais. “Ora, por que não param de reclamar e vão trabalhar?”. Esses são os desgraçados que encaramos como problemas sociais.

 Hoje em dia vivemos numa sociedade repleta de grupos requisitando seus direitos: Mulheres, negros, índios, gays, pobres e oprimidos. “Que se danem!” é o que normalmente se pensa nessas horas. “Querem roubar nossos empregos, nossas vagas na universidade, nossas terras, nossa vida!”. Buscamos, então, por soluções efetivas que já tenham sido devidamente testadas. Refundamos mecanismos antigos e retrógrados para dar a essas pessoas o que é delas por direito: sua cachaça, sua pedra de craque, sua favela, sua oprimida obscuridade. “Nosso mundo precisa ser limpo, que morram estes trastes!”.

Se olharmos bem para todas essas ideias que correm pelo meio de nossos círculos de amigos, podemos perceber algumas coisas. Gostaria de ressaltar duas em especial. Primeiro: atrás de um discurso integrador, supostamente caloroso e pacífico, há cicatrizes profundas que anos de colonização, escravidão e preconceito geraram em nossa sociedade.

Talvez isto não seja tão claro como em outros lugares do mundo, mas há certamente um grande ideário racista implícito em nosso jeito de agir. Esse discurso oficial vazio de que estamos livres do preconceito só clareia uma coisa: o quão pouco de amor que temos uns pelos outros. Não vou nem entrar no panorama mundial, não é preciso: fiquemos somente com o Brasil. O número de assassinatos aumenta a cada dia, assim como escândalos de corrupção política; abusos por parte das forças policiais; sistemas de saúde que não atendem às demandas básicas da nossa sociedade. Não é preciso entrar em maiores detalhes: todos sabemos do que estou falando.

E é a partir deste ponto que entramos no segundo fator que eu gostaria de ressaltar: quem é, realmente, o problema social do Brasil? Os coitados que nada têm e que precisam lutar por um pouco de dignidade? Ou seríamos nós, donos do acesso aos direitos políticos, a uma vida cultural estável e estabelecida, a recursos financeiros e intelectuais, nós que nada fazemos? Reclamamos por sentirmos que classes fragilizadas estão recebendo muita atenção – atenção estas que nós, supostamente, não mais ganhamos. Criamos um incrível discurso que classifica como preconceituoso(a) aquele(a) cidadão(ã) que quer fazer valer seus direitos assegurados pela constituição brasileira.

Estudantes que recebem benefícios do governo condenam aqueles que passarão a receber mais vantagens, aqueles que anteriormente nada tinham. Doentes que recebem tratamento pelo SUS ostracizam os moribundos que nunca foram contemplados com alguma perspectiva de ter uma saúde decente. Fazendeiros matam aqueles que nunca tiveram acesso a um pedaço de chão para plantar seu próprio sustento.

O mais incrível é que tudo isso acontece debaixo de nossos narizes. E nós costumamos cagar e andar pra tudo isso. O máximo que fazemos é escrever uma nota de repúdio ou um texto crítico, como este, para afirmar o quão chocados estamos com o rumo das coisas. Mas e o que fazemos, na verdade? Ficamos sentados em frente a nossos computadores, recebendo nossos gordos salários na segurança de nosso bem guardado lar.

Fingimos compaixão somente para nos sentirmos bem conosco mesmo. Se há uma greve, apoiamo-la sem sair de casa. Se há corrupção, condenamo-la à distância. Se há bêbados que espancam suas famílias ou viciados que roubam para sustentar seu vício, fazemos uma expressão consternada quando o assunto surge em meio a mais uma rodada de cerveja. Se alguém diz que não há amor no mundo, concordamos sem pensar duas vezes – e no próximo dia, desprezamos o primeiro pedido desesperado por um punhado de caridade.

Garçom fecha essa conta que eu preciso dar o fora daqui! Vou pra cama agora, dormir bem e esquecer tudo isso quando acordar. Por que é assim: alguns sofrem em silêncio, outros bebem, alguns fumam enquanto outros idiotas escrevem.

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