Marcham os soldados...


Todo o dia que os milicos passam correndo e cantando aqui do lado do prédio, sinto vontade de ensinar uma canção nova pra eles. Algo assim:

Por favor, ô seu sargento
Por que o senhor não dá um tempo?
Chega dessa cantoria
Me enchendo o saco todo dia!

Um, dois
Passam os bois
Três, quatro
Se indo pro meio do mato
Cinco, seis
Comandando como reis
Sete, oito
Vivendo sempre afoito
Nove, dez
Ao ritmo dos seus pés

Por favor, ô seu sargento
deixa desse abrasileiramento
Chega dessa cantoria
que matou um cidadão por dia!

Quando eles morrem, é mais fácil.



É mais fácil quando os acidentados morrem e não precisam de hospital. O peso sobre nossos bolsos e sobre os segundos caixas dos gestores públicos é menor. É mais fácil para aquele pobre diabo, que não vai passar o resto da vida sem andar, sofrendo com dores e falta de acessibilidade. Quando eles morrem, é mais fácil para o espetáculo da morbidez humana: o circo se arma e o círculo se fecha ao redor do morto - e ali naquela beira de estrada, todos os observadores fingem estarem se sentindo mal, mas lá no fundo, agradecem por não ter sido com eles. Mas se o pobre diabo não morre, aí não é nada fácil. Os gritos atrapalham a sensação de alívio, fazem ela ser substituída pela culpa e pela impotência - e até pela vergonha daquele sombrio pensamento de "por que ele não morre?".

É mais fácil quando os viciados morrem e não precisam de internação em hospital nenhum. Eles não ficam espreitando nossas vidas, prontos para nos tirar o suado salário do mês em troca de alguns instantes de êxtase. É mais fácil quando eles morrem e não ficam na rua sujando a nossa moral coletiva ou construindo suas favelas imundas. É melhor quando eles morrem e poupam sua família do peso da doença. Só não é fácil quando eles não morrem e ficam ali, como um tumor exposto à luz do sol, como uma doença altamente contagiosa, uma lepra social, que mostra pro mundo nossos problemas e nos faz lembrar, no nosso âmago, que a culpa é realmente nossa.

É mais fácil quando os pobres morrem e não precisam de serviço de saúde público, educação pública ou apoio governamental. Quando eles partem dessa pra melhor, porque qualquer coisa é melhor para esses pobres bastardos que sua vida, nos poupam vários reais em impostos: Sobra mais vagas nas boas escolas para que nossos filhos estudem de graça, sobra mais vagas nos hospitais para que nossos doentes se tratem de graça, sobra uma porção maior do orçamento público para melhorar nossos queridos bairros A e B. Só é duro quando eles insistem em viver naquela merda de vida, chafurdando na imundice e roubando nossa paz de alma. Quando eles não morrem, a mancha não vai embora e os nossos pecados se refletem em cada suspiro de cada mendigo, no rosto de cada criança que pede um troco pra poder comer.

É mais fácil quando os homens morrem e não precisam mais nos mostrar o quão falhos eram. A memória é maleável e pode escolher o que vai lembrar e o que vai esquecer: quando eles morrem, só lembramos das coisas boas. As estátuas nas praças e os nomes das ruas nos dizem que grandes homens construíram essa cidade, esse Estado, esse país - se não fossem por eles, hoje estaríamos entregues aos portugueses, aos comunistas ou aos pobres. Quando eles morrem, podemos dar vivas aos nossos heróis nacionais. Mas quando os safados resolvem ficar vivos, aí a coisa se complica. Vemos que eles costumam fazer mais besteiras do que boas coisas; ouvimos suas opiniões preconceituosas que nos deixam envergonhados porque, em grande parte, lembram muito daquelas tendências nossas que gostamos de deixar escondidas nos cantos sombrios das nossas mentes, reservadas às íntimas rodas de amigos.

É mais fácil quando a Verdade morre e não precisa ser exibida em praça pública. Quando ela morre, podemos relativizar as coisas e deixar que todos tenham direito ao seu próprio ponto de vista - desde que eles tenham a cor e o dinheiro certos. Sem Verdade, podemos nos entregar aos nossos desejos ignóbeis, desde que eles não sejam vistos por muita gente. Quando a verdade morre, é mais fácil de continuar vivendo sem lembrar da culpa - o que restam são doces lembranças de infância distorcidas. Às vezes ela teima em descansar pra sempre, é uma brigadora, todavia há sempre uma boa alma disposta a manter as coisas na mais santa paz. Mas quando a danadinha não morre, aí tudo tem que ser o que é, e quem não se esconde, mané, tem que ter suíngue no pé.

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